Mais um par de sapatos

Um texto que fiz como que brincando, sem muitas pretensões e sujeito a erros conceituais crassos.

Braz Delpupo Neto
2 min readJan 10, 2023

Esses dias estava lendo sobre Merleau-Ponty, e no caso havia um comentário do Heidegger sobre a obra de arte de Van Gogh onde é retratado um par de sapatos de uma camponesa. Daí, temos o brilhante Heidegger tecendo uma análise sobre o Ser do sapato, que está além do contato cotidiano banalizado e sua utilidade ou a descrição de suas peças e modo de fabricação.

Todo texto me lembrou o seguinte caso: a única vez em que fui ver a serenata italiana, realizada em Venda Nova, com meu irmão, sua namorada e seus amigos. Me marcou muito aquele dia — me emocionei muito durante essa viagem… foi como um desabrochar.

Mas quero me ater a um caso específico dessa viagem, de quando, no dia seguinte da festa em que usei roupas emprestadas de meu irmão, indo descer de seu quarto que ficava no segundo andar, olho para par de all-star que ele me emprestou na noite anterior; parei por alguns instantes para vê-lo, e não consegui trata-lo como um objeto que apenas me utilizei — tive o sabor, o cheiro, o tato à distancia de toda sua concretude; senti toda as pisadas que ele aguentou sobre meu pé diante de uma longa noite; pensei até que o tênis poderia estar “arrebentado”, mas não, era um tênis que suportou muito bem todo trajeto, apesar de não estar de todo limpo. E, finalmente, consegui ter a perspectiva a partir desse acontecimento, de que as coisas que usamos, inevitavelmente, acabam compartilhando de um mesmo corpo que o nosso: há uma relação em que os dois, sujeito e objeto mal delimitados, se tocam mutuamente, colocando à deriva alguma noção de autonomia do sujeito sobre o objeto, dado que há uma profunda incoporação entre eles a ponto de não sabermos dizer quem “usou” quem; para termos um entendimento disso, basta olharmos para as coisas e captarmos o sentido que delas brotam, deixando que elas falem por elas mesmas. Assim, pude captar um sentido que brotava do tênis graças a não tratá-lo apenas na sua utilidade ou banalizá-lo, mas vê-lo como coisa que me constituiu e que pode me fazer ver.

Há todo esse sentido nas coisas, mas, por uma pobreza de nosso tempo, temos tratado as elas apenas na sua utilidade, que logo esquecemos que são coisas, tornando-a objetos trocáveis e, logo depois, esquecendo delas na banalidade: seja essa uma forma de escaparmos de nós mesmos — do nosso esbarrar com as coisas que as preenche de sentido. Assim vemos uma casa em que tudo está ignorado, onde tudo é mal-cuidado, onde nada existe senão quem se utiliza de tudo. Não queremos ver o que fazemos com as coisas, quem dirá com as pessoas.

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